DESCAMINHOS DAS HORAS VÃS


– I –
Atropelados os sonhos
Os passos são contra o vento
Sugando o olhar que fazem chorar
Perfuram a pele e fazem sangrar
Desalinham os sentidos
E como bailarina solta em ponta
Os cabelos rodopiam
E a cabeça bate nas paredes
A tormenta entra alma adentro
E o coração aos saltos
Dissimulado
Apesar de descompassado
Finge a dor da morte do bem
Disfarce que aprendeu no palco
Com os artistas de circo
Com trapezistas sem rede
Com faquires obesos
Coração que nem mora mais no peito
Vive a deriva no mundo candente
Que não lhe oferece abrigo
Nem compaixão
Nem assossego
Nem nada
Coração marginalizado
Resto de gente
Párea
Mendigo castigado
Farrapo castrado
Víscera apenas
Coração branco de mágoa
Sombra de noite escura
Sem gesto
Sem fome
Sem carinho
Sem nada
Coração condenado à forca
Sem lágrimas, sua
Sem lagrimas de ninguém

– II –
Era a corrida pela vida
Era um sopro de ar
Era a teima em partir ou ficar
A necessidade de vingar
Traqueostomia
Apelos involuntários
A tangência singular na roda da vida
Nem era medo da morte
Nem era medo do desconhecido
Era uma coisa de querer viver
Pra sofrer mais
Pra doer mais a alma
Uma coisa meio que masoquista
Que a vida provoca
Uma coisa meio torta
Sem saber direito pra que lado correr
Um ou outro que passa no momento
Olha com cara de susto
Um susto covarde de ajudar
Um susto mal feito de Deus
Pra vir uma esperança capenga
Com gosto de sangue na boca
Com gosto de magoa no peito
Com gosto de poeira na pele seca
Com uma vontade imensa de ir
Mas precisando ficar
Ficar simplesmente pra nada

– III –
Mãos que puxam a corda do sino
E despertam a sabedoria
Mãos que seguram livros fechados
Que seguram a ignorância pelos cabelos
Mãos feitas pro piano
Longas e lindas
Mãos que apertam a garganta
E impedem de falar
Disfarce nos corredores da morte
Dos os artistas de circo
Dos trapezistas sem rede
Dos faquires obesos
Tentando sangrar até a morte
Mas precisando escapar
Pra salvar os pecados do mundo
Pra salvar inocentes traídos
Pra salvar a própria pele do castigo
Uma sobrevivência ilusória
Uma mentira de Deus
Um fingimento de felicidade
Uma hipocrisia enojante
Na tentativa de acreditar na vida
Pra que ela lhe olhe aos olhos
Pra ela lhe seja generosa
A clemência insuportável
A degeneração humana
Implorando por migalhas
Implorando por ar, água e sementes
Implorando por um espaço

– IV –
Apóstolos incomensuráveis da vida plena
Onde estão vocês com suas promessas vãs
Colocaram onde suas malditas verdades escandalosas
Que imperam o reino do senhor...
Onde estão as estradas que levam a paz...
Onde fica a minha parada
Cadê o meu lugar no arco-celeste em tons de cinza
Onde meus passos me levam ao desconhecido
Porque não posso penetrar no enigma amorfo
Desse mundo sem ar e sem vida
Porque o meu ar é diferente do ar do mundo
E porque minha vida não pertence a esse mundo
Deuses nos quais não acredito
Onde fica a saída dessa intransigência
Que peça é essa perdida nos campos de trigo
Onde o luar bate e faz o brilho dos diamantes
Existe um foco de luz nas impropriedades banais

– V –
Olho de cima e vejo a cidade
Com suas ruas encobertos
Com pétalas de rosas vermelhas
Rios de sangue correndo pro mar
É o susto da morte chegando com pressa
Tudo é substancial a partir de agora
O fim é próximo e sinto pena de mim
Pena dos sonhos derramados
Pena dos sonhos inúteis
Pena das noites que em claro
Passei à sombra dos mortos
As portas estão se abrindo para eu sair
Para que eu deixe o mundo
E eu com muito medo de ir sozinha
Queria alguém por perto
Totalmente descompensada
Não há mais como voltar atrás
Meu coração batendo a mingua
Minhas víscera em estado de falência
Tarde demais para desistir
Tarde de mais para mim
O ácido toma conta do meu sangue
Alucinações confundem as emoções
Quero levantar o corpo da cama molhada
Ir até a pia do banheiro e lavar o rosto
Mas não movo mais nenhum músculo
Ouço a gargalhada incontida
Dos os artistas de circo
Dos trapezistas sem rede
Dos malditos faquires obesos
Que a tudo assistem impassíveis
Percebo que para mim
É impossível até morrer em paz

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